Há
ficção demais na vida para ficarmos reféns de sua imitação. Nesta tarde uma
louca, não se sabe como, adentrou o portão da empresa e o travou, ficando entre
este e uma porta mais à frente, presa num quadrado de quatro metros quadrados.
Eu, que trabalho na mesma empresa, mas no escritório da casa ao lado, fui o
escolhido para redimir aquela gente.
-
Você tem que nos salvar! Ninguém, nenhum homem aqui está com coragem de abrir a
porta. Ela está descontrolada!, falou-me o telefonema.
Fui
lá. Notei que havia esparramada na calçada uma blusa rota de lã, bolorenta, e
quando me aproximei do portão o que vi foi um ser que, de ágil e feroz, mais
parecia personagem foragida de algum apocalipse zumbi. Meio corcunda,
capengante, aquela senhora não fazia ideia de onde estava. Destravei com a
senha e abri o portão.
-
Senhora, tudo bem? Já pode sair... Aquela blusa é sua?
-
Sim, sim, disse-me ternamente, com um lindo riso sem dentes. É que eu a esqueço
sempre, sou muito esquecida, sabe? Esqueço tudo, sempre.
-
Está tudo bem, vamos.
Acompanhei
a velha até a calçada e retranquei o portão, ao passo que, de dentro, a porta
se abria com o mais novo corajoso da empresa, o qual recebeu apenas minha negativa
de cabeça, em desolação.
Eu
sou muitas pessoas destroçadas, dizia um verso de Manoel de Barros que, desde
que li neste mesmo dia pela manhã, agarrou-se a mim, latejando alguns
pedaços que não voltam. Percebi que voltara para minha sala com os pedaços da
louca, seu cheiro de fezes, suor e urina, com tudo que ela tinha de humano
e desesperador. Mas o surpreendente estaria por vir.
Fim
de expediente. Lua imensa no céu. Quem encontro na calçada? Sim, a louca.
Passei por ela sem notar que alguns pedaços, os mais sutis, escorriam-me pelas
pernas. Minhas mãos tremiam, suavam. Eram muitos pedaços. Do portão surgiu outro
corajoso, que não teve coragem de abrir a porta nem mesmo quando ela não estava
mais lá. Indaguei-o. O que houve, por que não saíram? Ele me respondeu que as
mulheres estavam gritando e que a velha também não falava coisa com coisa,
poderia ter uma arma, uma faca, vai saber... Sim, vai saber, respondi.
Ela continua ali, apontei. Ele tapou o nariz, olhou para a mancha oval no
chão e, balançando a cabeça, concluiu que ainda por cima ela mijou na entrada.
E seria melhor já ir... Até amanhã, tchau. Tchau, até amanhã.
Voltamos
a ficar a sós, eu e a velha. Ela permanecia lá, de costas, sentada
bem à minha frente. Nós e nossos pedaços. Não, eu não conseguia partir.
Não era justo apenas deixá-la ali. Fui andando lentamente para perto da louca
que, inquieta, mexia-se como se o chão fosse uma cadeira de balanço. Nas mãos,
uma viola imaginária.
-
Senhora... Ei, senhora, está tudo bem?
-
Sim, meu filho, tudo bem.
-
A senhora tem casa?
-
Sim, moro com meu marido, ele já vem me buscar.
-
E onde ele está?
-
Ali na frente... Ó lá, pulando no fogo! Somos do fogo, sabia? Nos apresentamos
sempre juntos.
Olhei
na direção dos seus olhos risonhos e mesmo sem o ver, o vi profundamente. E era
lindo mesmo, aquele jeito louco dele dançar no meio do fogo. Não me contive, ri
o riso mais criança, mais aberto que já tive na vida. Um pedaço triste de magma
me caia da retina.
-
Ah, é? E onde vocês se apresentam?
-
Em muitos lugares, temos muitos lugares. Neste ano foi Lollapalooza, mas a
gente vai pra todos os lugares, todos. Somos do exército do grande Deus do
fogo, nunca perdemos uma batalha, sabia?
-
Claro que não, boto fé. E a senhora está com fome?
-
Não, comi muita lasanha.
-
E vai ficar por aqui?
-
Meu marido vai vir me buscar. Sabia que ele brinca com o fogo? Olha lá!
-
Incrível, muito incrível!
Fiquei
por alguns segundos olhando a dança do marido imaginário, rindo com ela
num êxtase de pedaços soltos e prece combinada, silenciosa.
Deixei-a
lá com a viola, a noite era uma criança. Quando foi que a noite envelheceu? No
caminho de casa fui recolhendo pedaços que voltavam sem dor. Mais um dia de
trabalho se recolhia no horizonte. A vida não é trabalho, pensei, é a
possibilidade do encontro. No meio de tanta gente doida, encontrei a violeira
do fogo, a mais real entre todos os exércitos! Ah, abençoados sejam os
loucos, sejam os poucos que fabricam suas próprias portas e adentram sem
encargo no reino dos céus.