terça-feira, 31 de março de 2015

A VIOLEIRA


Há ficção demais na vida para ficarmos reféns de sua imitação. Nesta tarde uma louca, não se sabe como, adentrou o portão da empresa e o travou, ficando entre este e uma porta mais à frente, presa num quadrado de quatro metros quadrados. Eu, que trabalho na mesma empresa, mas no escritório da casa ao lado, fui o escolhido para redimir aquela gente.
- Você tem que nos salvar! Ninguém, nenhum homem aqui está com coragem de abrir a porta. Ela está descontrolada!, falou-me o telefonema.
Fui lá. Notei que havia esparramada na calçada uma blusa rota de lã, bolorenta, e quando me aproximei do portão o que vi foi um ser que, de ágil e feroz, mais parecia personagem foragida de algum apocalipse zumbi. Meio corcunda, capengante, aquela senhora não fazia ideia de onde estava. Destravei com a senha e abri o portão.
- Senhora, tudo bem? Já pode sair... Aquela blusa é sua?
- Sim, sim, disse-me ternamente, com um lindo riso sem dentes. É que eu a esqueço sempre, sou muito esquecida, sabe? Esqueço tudo, sempre.
- Está tudo bem, vamos.
Acompanhei a velha até a calçada e retranquei o portão, ao passo que, de dentro, a porta se abria com o mais novo corajoso da empresa, o qual recebeu apenas minha negativa de cabeça, em desolação.
Eu sou muitas pessoas destroçadas, dizia um verso de Manoel de Barros que, desde que li neste mesmo dia pela manhã, agarrou-se a mim, latejando alguns  pedaços que não voltam. Percebi que voltara para minha sala com os pedaços da louca, seu  cheiro de fezes, suor e urina, com tudo que ela tinha de humano e desesperador. Mas o surpreendente estaria por vir.
Fim de expediente. Lua imensa no céu. Quem encontro na calçada? Sim, a louca. Passei por ela sem notar que alguns pedaços, os mais sutis, escorriam-me pelas pernas. Minhas mãos tremiam, suavam. Eram muitos pedaços. Do portão surgiu outro corajoso, que não teve coragem de abrir a porta nem mesmo quando ela não estava mais lá. Indaguei-o. O que houve, por que não saíram? Ele me respondeu que as mulheres estavam gritando e que a velha também não falava coisa com coisa, poderia ter uma arma, uma  faca, vai saber... Sim, vai saber, respondi. Ela continua ali, apontei. Ele tapou o nariz, olhou para a  mancha oval no chão e, balançando a cabeça, concluiu que ainda por cima ela mijou na entrada. E seria melhor já ir... Até amanhã, tchau. Tchau, até amanhã.
Voltamos a ficar a sós, eu e a velha.  Ela permanecia lá, de costas,  sentada bem à minha frente.  Nós e nossos pedaços. Não, eu não conseguia partir. Não era justo apenas deixá-la ali. Fui andando lentamente para perto da louca que, inquieta, mexia-se como se o chão fosse uma cadeira de balanço. Nas mãos, uma viola imaginária.
- Senhora... Ei, senhora, está tudo bem?
- Sim, meu filho, tudo bem.
- A senhora tem casa?
- Sim, moro com meu marido, ele já vem me buscar.
- E onde ele está?
- Ali na frente... Ó lá, pulando no fogo! Somos do fogo, sabia? Nos apresentamos sempre juntos.
Olhei na direção dos seus olhos risonhos e mesmo sem o ver, o vi profundamente. E era lindo mesmo, aquele jeito louco dele dançar no meio do fogo. Não me contive, ri o riso mais criança, mais aberto que já tive na vida. Um pedaço triste de magma me caia da retina.
- Ah, é? E onde vocês se apresentam?
- Em muitos lugares, temos muitos lugares. Neste ano foi Lollapalooza, mas a gente vai pra todos os lugares, todos. Somos do exército do grande Deus do fogo, nunca perdemos uma batalha, sabia?
- Claro que não, boto fé. E a senhora está com fome?
- Não, comi muita lasanha. 
- E vai ficar por aqui?
- Meu marido vai vir me buscar. Sabia que ele brinca com o  fogo? Olha lá! 
- Incrível, muito incrível!
Fiquei por alguns segundos olhando a dança do marido imaginário, rindo com ela num  êxtase de pedaços soltos e prece combinada, silenciosa.
Deixei-a lá com a viola, a noite era uma criança. Quando foi que a noite envelheceu? No caminho de casa fui recolhendo pedaços que voltavam sem dor. Mais um dia de trabalho se recolhia no horizonte. A vida não é trabalho, pensei, é a possibilidade do encontro. No meio de tanta gente doida, encontrei a violeira do fogo, a mais real entre  todos os exércitos! Ah, abençoados sejam os loucos, sejam os poucos que fabricam suas próprias portas e adentram sem encargo no reino dos céus.




(foto: Ricardo Laf)