Caros leitores,
Nesse mês de março iniciei minha coluna mensal "Letra Envenenada" no Jornal "Conteúdo Independente", distribuído nas Cidades de Cotia, Vargem Grande Paulista e região.
Publicarei sempre contos, crônicas ou poesias de temática crítica - social, cultural e política - seguindo assim a demanda do jornal e de seu público.
Nesse link vocês poderão baixar em pdf o jornal na íntegra:
http://www.4shared.com/dir/qk9H1UDS/sharing.html
Abaixo o texto publicado na minha coluna desse mês. Axé a todos e uma boa leitura!
"CARTEIRADA"
Um notório político do exótico Carnival´s Country, também conhecido como “Terra Brasilis”, chega ao céu subitamente após um impetuoso desastre com seu jato particular. De cara, uma fila astronômica lhe surge nos olhos ainda embaçados.
O engomado Senador mirou ao redor e percebeu que todo o horizonte era preenchido por esta fila que, em forma de caracol, tinha em seu centro a saída ou entrada para algum recinto. Somente quando viu que, imersos nas nuvens, os pés inchados pareciam flutuar, foi que a ficha caiu, melhor, rebateu na caixa do cérebro até o convencer de que seu vôo não chegaria tão cedo às Ilhas Cayman, paraíso onde um ilustre amigo banqueiro o esperava para costumeiras transações.
Empurrando todos, foi se aproximando do centro do caracol até encontrar um senhor bastante alto, barbudo e grisalho que, ao seu ver, era o porteiro ou guardião daquela vertical porta dourada, incrivelmente presa a nada. Antes de falar qualquer coisa, empunhou um cartão e o esfregou na cara do barbudo.
- Por favor, dirija-se ao fim da fila - disse o Porteiro numa voz grave e serena.
- Escuta aqui, nunca ouviu falar em “Cartão Diplomático”? Desculpe-me, mas não tenho tempo a perder.
- Tempo? Bem vindo à eternidade, filho.
- Filho? Piada, né?... Posso passar ou não?
- Já disse, dirija-se ao fim da fila.
Inconformado com tão constrangedora situação - algo que jamais passaria em vida - o Senador mordeu os lábios, contou até três, levantou a cabeça e, estufando o peito, coagiu com veemência.
- Escuta aqui, você sabe com quem está falando?
O Guardião lançou-lhe um olhar de profunda indiferença, ao passo que o Senador retirava inúmeros cartões do bolso, classificando-os em voz alta.
- Está vendo este?, é do clube mais requintado do mundo! Este é de pensionista vitalício do meu Estado! Este, série plus-master-ouro, tem um limite maior que toda riqueza que um dia você poderia acumular!
O olhar indiferente permanecia estático e parecia atravessar o Senador. Algumas vozes já começavam a fazer coro.
- Pô, Pedro, tira esse cara logo daí!...
- É isso mesmo, não temos a morte inteira para ficar nessa fila e, olha, lá vem mais gente!...
- Xiii, parece que inundou de vez o país desse sujeito aí...
Gargalharam todos.
Compreendendo de quem se tratava e ainda sentindo que tinha algumas cartas na manga, o Senador não se deu por vencido.
- Então quer dizer que você é o famigerado São Pedro, responsável pelas enchentes que assola o meu país e, pior, renegador de Cristo por três vezes!
Pedro coçou a barba.
- Meu filho, a razão de ainda haver vida no seu planeta são minhas chuvas e, por um acaso, lembra-se de quem edificou a Igreja de Cristo? Vai contentar-se com o fim da fila ou prefere que eu puxe a sua lista e lhe fale quantos projetos “anti-enchentes” você aprovou e o real destino das verbas? Deve ter percebido que seu lugar na fila depende unicamente dos seus atos - “livre arbítrio”, como dizem por aqui.
Pela primeira vez na vida – ou na morte - o Senador se enrubesceu. Abaixou a cabeça e percebeu a seriedade da situação.
- Deveria ficar feliz por estar nesta fila, filho; há uma outra, mais abaixo de nós, onde teria certamente teu lugar cativo.
- Não, esta não, por favor!... Não há mais nada a se fazer? Eu poderia voltar e reaver tudo...
- Está certo disso? Poderá se vê numa situação diferente da que deixou para trás - “resgate cármico”, como dizem por aqui.
- Aceito tudo... Tudo, menos essa fila infernal!
Eis que surge à sua frente uma nova porta, desta vez de um elevador com três botões: “Andar de baixo”, “Reencarnar” e “Falar com o chefe”. Pensou em apertar o terceiro, mas o olhar de Pedro dizia “melhor não!”. Apertou o segundo e desceu como um raio...
Saiu da casca e logo percebeu que não estava sozinho – ao lado, o irmão mais velho ansiava por sua chegada. Pensou em perguntar onde estava, mas o que se ouviu de seu bico foi um piar muito fino, imperceptível. Após longas horas, tornou a piar, dessa vez de fome, muita fome... A mãe, enorme e emplumada, finalmente chega e lança ao ninho uma vitela putrefata. Enojado, virou o bico e, também, não poderia aceitar ter uma mãe assim, de cor tão temperada... Na mente, as reminiscências de um baby-beef de nobres vacas holandesas – dessas que tomam cerveja e ouvem Choppin a vida inteira – grelhado no alho e na manteiga, diziam-no que não, que jamais comeria essa carne estragada! Quando a mãe retornou à busca de mais alimento, desolado e com muita raiva, bicou o irmão. Notou que havia, ao menos, ganhado um bico bastante afiado. Gostou muito do cheiro de sangue fresco exalado no ar. Bicou, rebicou... Não demorou para que o bucho estivesse cheinho, mas o que gostou mesmo foi do fraterno fígado, suave como caviar, pena que pequeno demais.