Caríssimos amigos e leitores,
Recentemente tive um conto meu comentado/criticado no artigo da “Revista Opiniães” (revista literária dos pós-graduandos em Literatura Brasileira da FFLCH-USP) que gerou um diálogo crítico entre nós muito significativo e interessante. Trata-se de um conto publicado como vencedor do “II Festival de Literatura da Faculdade de Letras-USP”.
Seguem abaixo: o conto na íntegra, logo após o referido trecho do artigo, e, ao fim, os meus comentários, que deverão ser publicados numa futura edição da revista.
Para quem gosta de pensar sobre “temporalidade” e estrutura geral de um conto, é uma boa pedida. Confira!
“SUBSOLO”
Acordaria.
Ou no abrir dos olhos ou no momento crucial em que a água bateria nas costas.
Com a face encoberta de creme e gilete nos dedos, correria até o aparelho de som. Uma grave voz, usurpando o espaço acústico daquele cômodo fechado, denunciaria o tempo daquela manhã.
As vestes, organizadas e estendidas no dia anterior sobre a escrivaninha, encaixar-se-iam perfeitamente em seu corpo já elétrico.
No elevador, o primeiro pensamento do dia adentraria desconexo no apertar do “T”: Tony, reunião com Tony; o segundo também: licitação; e o terceiro: parecer tributário com John, e ainda outros mais ou menos claros e/ou interligados.
Acenaria ao porteiro na medida em que subiriam os vidros fumês. O velho senhor nordestino, com um sorriso e outro aceno, apertaria o botão. O portão fecharia segundos depois que o conversível cantasse pneu e virasse a esquina do quarteirão.
No parar de um sinal e outro, algumas placas sugeririam mais pensamentos. A música noticiosa ofuscaria qualquer som que viesse de fora dos vidros.
Travaria o cadeado no câmbio. Estacionaria o carro a algumas ruas paralelas.
Cafezinho rápido.
Na padaria logo à frente examinaria alguns papéis sobre o balcão. Caminharia dali sem problemas até o escritório da multinacional.
Atravessaria a faixa de pedestres à medida que o Sol, já quente, derramaria algumas gotas de suor da testa para debaixo dos óculos escuros. Levantaria a manga do terno para se secar.
No instante entre o recolocar dos óculos e uma breve olhada diagonal, avistaria uma praça, muitos pombos e uma criança correndo...
A garotinha ri sempre que, ao correr para pegar um rabinho qualquer, sente um vento no rosto: o vento que sai das asas dos passarinhos! Quase sem fôlego, volta correndo até o avô que, abrindo a mão, entrega-lhe mais milho. “Agora eu pego! Quer ver, Vô?” Se conseguir, é certo que a Mamãe lhe dará muitos beijos; e também vai dar uma pena pro Papai, outra pra Titia... Joga outra vez bem pro alto. Bate palminha ao ver todas ao seu redor. Olha o Vô que com um gesto diz “vai!, pega!”. A pombinha malhada, aquela de manchinhas pretas, está bem à frente. Excitada, a garotinha olha outra vez pro Vô, junta as mãozinhas, põe um dedo na boca e prepara o bote que dessa vez será fatal!...
Colocados os óculos, esbarraria no transeunte que viria em direção contrária. Sem desculpas, os dois apressados chegariam ao outro lado da rua antes que o sinal abrisse.
Lembraria sua filha quando pequena, sensação incerta que sentiria de relapso entre o som de uma buzina e a vista de um outdoor eletrônico.
No elevador, o “S” de “Subsolo” invocaria o último pensamento do dia: Silvia. Se não esquecesse, seria preciso marcar um jantar naquela semana – muitas coisas restariam confusas desde aquela súbita separação.
Abaixo o trecho da edição de nº 2 da Revista Opniães (pag. 126), artigo “Reflexões Acerca da Escrita na Atualidade”, por Edilson Dias Moura e Mario Tommaso.
(...)
Algo curioso, nos contos publicados, é que eles apresentam estruturas bem parecidas. É um pouco do que ocorre com o poema de Alípio Freire: parece haver neles a dependência do que há de atraente no gênero, isto é, ser suporte de um olhar para o mundo atual em busca do que nele parece se apresentar de modo difuso.
O conto “Subsolo”*(1) de Willian Delarte*(2), segundo este último aspecto, é um bom exemplo desse tipo de uso e procura. Trata-se de uma narrativa fragmentada pelo olhar de um executivo em seu trajeto ao trabalho. E é conforme a sensorialidade do mundo que o personagem se mostra: seu despertar se dá com o choque da água; no momento em que se barbeia, corre para ouvir, segundo a sonoridade, a previsão do
tempo para o dia; descendo o elevador, o “T” do botão, térreo, lhe lembra o nome de um dos membros da reunião daquela manhã. O mundo é sensorialmente captado pelo personagem em função dos compromissos sociais. Tais sinais servem como estímulos
num mundo administrado silenciosamente pelos botões:
“Acenou ao porteiro na medida em que subiam os vidros fumês. O velho senhor nordestino (...) apertou o botão [da portaria]”5. E “no parar de um sinal
e outro, algumas placas [de trânsito] sugeriram mais pensamentos acerca da reunião”.
Em poucas linhas, apresenta-se determinada situação de estímulos sensoriais, segundo a linguagem de um mundo maquinal, que só vai ser interrompida pelo elemento humano.
No momento em que o personagem atravessa a “faixa de pedestre”, entre o levantar os óculos escuros e enxugar uma gota de suor, vê uma criança correndo atrás de pombos numa praça. É o parágrafo mais longo, doze linhas, em que se observa, em poucos segundos, a interação humana entre um avô e sua netinha, na praça, dando milho aos pombos. Tal cena, diferentemente dos sinais e símbolos, distingue-se exatamente por não ser estímulo, mas por anulá-lo. Ela quebra a sequência maquinal, desliga o personagem, esvazia sua mente, comandada pelos botões, e o faz trombar com um pedestre: “Colocados os óculos, esbarraria no transeunte que viria em direção contrária. Sem desculpas, os dois apressados chegariam ao outro lado da rua antes que o sinal abrisse.”
Ora, é notável o uso do tempo nessa pequena narrativa: o uso do futuro do pretérito simples indica que nada aconteceu. A menina evoca a lembrança da filha, a relação humana, a esposa de qual provavelmente havia se separado. O conto termina com a sentença: “Se não esquecesse, seria preciso marcar um jantar naquela semana: muitas coisas estariam confusas desde aquela súbita separação”.
O fato de ter usado o tempo futuro do pretérito subverte o sentido aparente de uma conciliação. O mundo capitalista, maquinal, de linguagem matemática e mecânica vence as relações humanas. O “se não esquecesse” não é presente, mas um presente suposto num futuro do pretérito. Muito embora fique um pouco confuso no final – o autor poderia trabalhar um pouco melhor a temporalidade nos últimos parágrafos –, é um bom conto. Depende de uma estrutura nem um pouco nova, mas reflete minimamente a linguagem do presente, procura nela talvez algo de que não tenhamos ainda nos dado conta.
*1 – no texto original consta “Uma Manhã”, alterei pelo título atual do conto “Subsolo”.
*2 – no texto original consta meu nome civil, alterei pelo autoral.
(...)
A Revista Opniães entrou em contato e eu enviei por email os meus comentários acerca do artigo e minha visão sobre a temporalidade do conto. Abaixo, os trechos relevantes.
Olá equipe da revista “Opiniães”,
A priori, informo que na inclusão desse conto no projeto oficial de um compêndio de narrativas curtas (a ser publicado) o título “Uma Manhã” foi alterado para “Subsolo” (em anexo a versão oficial), também passei a usar o nome autoral “Willian Delarte” (...) .
Concordo com a visão proposta à narrativa e parabenizo os pós-graduandos Edilson Dias Moura a Mario Tommaso pela clareza e agudeza de interpretação. Apenas amplio a discussão a respeito da última passagem do conto, a saber:
“Se não esquecesse, seria preciso marcar um jantar naquela semana – muitas coisas restariam confusas desde aquela súbita separação”
Uma pequena observação: a palavra “estariam” foi alterada nessa nova versão pela “restariam”, o que, no bem da verdade, não interfere na temporalidade, apenas acrescenta a idéia do “subsolo cognitivo”, esse universo temporal subjetivo não acessível à personagem – os “escombros de sua própria mente” - considerando que, como bem dito, ela passa pela realidade “no automático”, movido apenas por estímulos externos.
Voltando à questão da temporalidade, é preciso dizer que nessa nova versão o tempo narrativo está organizado rigorosamente em dois grupos, sendo:
Narrativa no “Futuro do Pretérito” – O Tempo do “não acontecimento”.
Narrativa “no Presente” – O tempo do “viver”, da realização de um história humana.
A crítica, pois, em sua conclusão, afirma que a avocação de um “presente suposto num futuro do pretérito” (“Se não esquecesse...”), deixa “confusa” a temporalidade nos últimos parágrafos. Penso, entretanto, que o uso verbal dessa passagem é adequado e necessário à estrutura temporal do conto, ou seja, à necessidade de mantê-la ainda no tempo do “não acontecimento”.
Explico-me. Imaginemos que eu narre esse trecho no presente (tempo do viver) e, por conseguinte, também no “hipotético futuro desse presente”:
“Se não esquecer, será preciso marcar um jantar...”
A construção infinitiva “se não esquecer”, por sua vez, é um “suposto futuro desse presente”, e “será” o futuro “real” dele . Logo, quando a narrativa se desenvolve no “futuro do pretérito” (“seria preciso”), por coesão da estrutura interna proposta pelo conto, esse “hipotético futuro desse tempo” (“se não esquecesse”) torna-se necessário para que a narrativa se mantenha firme no tempo do “não acontecimento” em oposição ao único tempo presente em todo o conto, a passagem “vivida” pela menina e seu avô.
(link para baixar a revista: http://revistaopiniaes.files.wordpress.com/2011/08/opinic3a3es-nc2b02.pdf)
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