Era o comecinho da década de
90. Moleque de tudo... Meu vizinho, um
tanto mais velho, tinha arranjado um vinil e me chamou pra escutá-lo. Pomposo,
todo bonitão, preto e branco, mais preto que branco, e um preto por trás de uma
grade... Porra, aquilo era Rap!, mas de cara percebi que era algo muito
diferente daquilo que Pepeu me cantava com nomes de menina.
Eu tenho algo a dizer
E explicar pra você
Mas não garanto porém
Que engraçado eu serei dessa vez!
Porrada, porrada, uma porrada
atrás da outra!, e incrível é notar como me lembro perfeitamente da dor destas
porradas e do alumbramento que foi este primeiro contato com os Racionais.
Fiquei quieto, apreensivo, ouvido grudado na caixa do três-em-um CCE do meu
amigo.
Sei que problemas você tem demais
E nem na rua não te deixam na sua
Entre madames fodidas e os racistas fardados
De cérebro atrofiado, não te deixam em paz
O vinil, creio, tinha três
versões desta mesma música, e na terceira audição eu já estava arriscando umas
rimas com o cara de voz seca, arame farpado, que já aí eu descobri atender pelo
cromático, e sonoro, nome “Brown”.
Chega de festejar a desvantagem
E permitir que desgastem a nossa imagem
Eu conhecia Tim, meu pai tinha o
seu vinil “Racional”, mas eu nem ligava uma coisa à outra, nem imaginava que os
negros brasileiros criavam uma contracultura e que se firmaria, hoje em dia,
século XXI, na única cultura musical de “voz ativa” deste país. Eu nem sabia
que o Hip Hop era ainda maior que isso tudo.
Mais da metade do país é negra e se esquece
Que tem acesso apenas ao resto que ele oferece
Tão pouco para tanta gente
Tanta gente, tanta gente na mão de tão pouco
Depois veio o disco que os
lançariam às fm´s paulistas, estas que arriscavam enfiar o RAP entre pagodes, poperôs e
afins... Mano na Porta do Bar, Fim de Semana no Parque, Um Homem na
Estrada!... Porra, a molecada pirava e
entoava palavra por palavra... Eu não entendia de música, não entendia de merda
nenhuma, mas sentia que tudo aquilo era maior que os dias monótonos em que meu
pai voltava tarde do trabalho e minha mãe se virava pra também trazer o pão.
Aquilo era Arte, mas eu não sabia.
O carnaval era a festa do povo
Era, mas alguns negros se venderam de novo
Brancos em cima negros em baixo...
Benvidos ao Brasil colonial...
Anos mais tarde o Rock também
veio me trazer o aparato estético que me levaria a conhecer Bethoven, Choppin,
e tantos outros gênios da música erudita. Minha formação cultural foi, sim,
autodidata, levada e embalada desde o início pela música popular, e foi o Rap
na sua oralidade latente, o Rap nacional!, nas letras e nas farpas dos
Racionais MC´s , que plantou e fez crescer em mim toda essa indignação, essa
revolta, essa fome de liberdade e poesia que também tento, hoje, sublimar em Arte.
Justiça é o que nos motiva
a minha, a sua, a nossa voz
ativa!
* Texto lido no evento "Hip Hop: Literatura, Memória e Oralidade", 26/09/2012, no Matilha Cultural-São Paulo/SP)
Link para audição no youtube da
canção “Voz Ativa” dos Racionais MC´s (do álbum “Escolha seu Caminho” - 1992): http://www.youtube.com/watch?v=8JPJ9P9ptvk
Cara excelente, contextualizado totalmente... São experiências que nos transformam e nunca mais seremos os mesmos... PAZ!
ResponderExcluirÉ isso aí, mano Edê!
ResponderExcluiraquele abraço