I
venha cá, se achegue. e fale mais
desse avesso. fale desse tropeço, do desaconchego desse soluço. ãh, foi susto?
foi não. foi nada. é esse descompasso marcado, esse jogo viciado, esse lance de
sorrir, por sorrir. essa rugosidade na pálpebra parece leveza, mas se vê que é
cansaço. esse jeito de piscar sem querer, de segurar as palavras na ponta dos
dentes, no fundo da língua. fale, vamos, fale! e dê cá um abraço. esqueça essa
loucura de ser feliz. inventaram mentiras melhores, sabia? nenhum anjo virá pra
te salvar, e o céu está mais vazio que, sei lá... pense n´algo vazio. é isso.
toda força há de surgir desse ponto, desse encontro. agora, vamos, encanta-se!
vire salamandra, galinha d´angola, aranha trepadeira. a vida é sempre
imaginada, sabe? e só lhe trará alguma semente cósmica se partir desse ponto.
encontre sua pulsação, grite e sobredeite-se. estamos juntos, sempre juntos, só
em barcos diferentes. veja o mar, parece grande e inconsciente? pois seja.
escafandre o céu e preencha-o com sua ausência. pronto. todo esse peso, essa
câimbra, foi nós também que inventamos. perceba: há uma falha, um vão, um jeito
de se completar que é só seu. dance e sobredeite-se! está vendo? há mentiras
muito melhor imaginadas. e há mais
verdade nisso.
II
há um lugar que é só nosso.
carrego o meu há mais de quinze anos. fica entre a copa de algumas árvores. o
movimento é sempre o mesmo: entreabro-as vagarosamente, primeiro com uma,
depois com a outra mão. meu rosto avança entre a folhagem e os olhos se
esbugalham com a luz de um horizonte inalcançável. no meu lado direito,
escorrendo sobre a montanha com a elegância de uma deusa, abre-se uma tripla
cachoeira. cai e se perde no mar. bolha com bolha com bolha. ao meu redor, mar,
azul azul e martins pescadores. por trás das quedas pulsa uma exuberante gruta
de formato triangular. dá para entrar em sua profundidade, sentir a umidade,
ouvir o som cristalino dos pingos que caem lá dentro. sempre que preciso de um
descanso, dormir, respirar, vou para lá. fico horas observando as penas
daqueles pássaros, flutuando na queda d´água, voando no sal da brisa, esticando
o mar. esse lugar não existe. o trajeto diário, que sigo de casa ao trabalho,
também não existe. as pirâmides do egito, para fora de todos os cartões
postais, também não existem. a geografia do mundo há de ser sempre uma ilusão
perante o meu lugar que nunca existiu. e que avança a cerca um metro a cada
dia. e que se afundará comigo na memória > qual âncora < em sua dança de
água.
(Foto: Sebatião Salgado, em "Gênesis")
Nenhum comentário:
Postar um comentário