Nas praças de Vargem Grande Paulista, Cotia e região (mais Butantã - São Paulo/SP) - a edição Especial de Natal do Jornal Conteúdo Independente!
Confira abaixo a crônica, publicada na minha coluna Letra Envenanada desse mês, "O Tempo na Ponta do Dedos", especialmente escrita para essa edição especial de fim de ano.
Folhei aqui e também baixe o jornal na íntegra!
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"O TEMPO NA PONTA DOS DEDOS"
“aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez,
com outro número e outra vontade de acreditar
que daqui pra diante vai ser diferente”.
( “Cortar o Tempo” - Carlos Drummond de Andrade)
Era o meu primeiro reveillon fora de casa, fora daquela paz e normalidade que fazia a cidade de Cotia viver um tempo que era só dela, suspenso no largo espaço que comportava meia dúzia de casas, estradas de terra, e um Verde maior que toda a Floresta Amazônica - ao menos para mim, que o enxergava por baixo e por trás de dois olhinhos tímidos, meio-puxados, de quem mal havia completado nove primaveras... “Oba, hoje é o dia do Ano Novo!”, meu primo, um pouco mais velho do que eu, constatou logo pela manhã, e esta frase, lembro-me bem, ressoaria em mim por todo o dia.
Estiquei as palmas no ar e detectei que faltavam apenas um dedo para eu completar os anos da mão. “O que seria da vida após os dez? Contaria os anos nos pés?”, indaguei-me em minha estúpida inocência. Nove anos, nove anos, noventa... Íamos dos noventa para o noventa e um e, até então, creio que não me tinha dado conta desse ritual anual de passagem do tempo; por certo passei todos os anteriores dormindo já antes mesmo da grande-hora, na paz dos grilos da minha cidade... Mas ali não era a minha cidade, era São Paulo, Jardim D´abril, agitada, estridente, com suas infinitas casas de madeira que só depois eu fui descobrir que carregavam o singelo nome de “favela”. Nem existem mais estas hoje em dia, tornaram-se prédios populares, e nem é fato que o meu primo morava em uma delas, mas para mim tudo compunha uma grande massa de pessoas, madeira, córrego e confusão.
A cinco minutos da hora zero - do mais que esperado 1991! - meu primo me puxou pelos braços... Largamos nossos pais e demos a errar por becos e ruas lotadas de gente, música, bebidas, gritaria, até chegarmos ao ponto mais alto do bairro. Ele apontou para cima e disse: “é agora!”
De súbito, o céu se pintou de vaga-lumes explosivos, magníficos, soberbos, mas extremamente barulhentos... Tapei os ouvidos e me pus a gritar, não sei bem o porquê, seguia apenas a pulsação do céu... Ele me abraçou e disse “Feliz Ano Novo!”, e a mesma frase surgiria por todos os lados, como ecos da fala do meu primo... Foi aí que o mágico ocorreu! Toda essa gente estranha e desconhecida veio me abraçar, jogar-me para o alto, desejar um infinito de coisas abençoadas... Mesmo sem entender de tudo aquilo, eu entrei na dança e, ao lado do meu primo, fui cumprimentando a todos que via; todos, absolutamente.
No caminho de volta, pegamos outros atalhos e passamos também pela favela, aplicando o mesmo ritual de comiseração. Não existiam ali mais casas de madeira, córregos, lama, violência, confusão - éramos todos humanos num só corpo de sangue, carne e Esperança.
Voltei aos braços dos meus pais... Estavam preocupados, mas nem deu tempo de brigarem: dei-lhes o abraço mais apertado da minha vida e o mais alto “Feliz Ano Novo” que se viu.
Não sabia o que viria após os dez, nem o que realmente significava ter, assim, um ano novo só para mim... Acho mesmo que continuo não sabendo nada dessas coisas. Sei que hoje o tempo corre, escorre, e que naquele tempo o Tempo era outro, era um deus grande e misterioso, arredio, poderoso, mas ainda tão menino que era fácil, gostoso de tocar e retê-lo na ponta dedos.