segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

CANÇÃO DO NÃO-LUGAR


Amigo é coisa pra se soltar
na gaiola e alimentar
seu sonho de liberdade.

Feito isso, partirá.

Também par
                         tido
você estará
com a sensação de que um membro fora cortado –
ele que, a ti encarnado,
você jamais pensou que lâmina estúpida
pudesse o arrancar.

Você tentará movê-lo,
sentirá uma fisgada,
e ele não estará lá.

No verão, retornará ao ninho
qual filho pródigo,
mas não lembrará
o código de se deitar.

O membro restará cortado,
e não haverá prótese que substitua
a carne que vocês compuseram
com sangue, suor e lágrima.

Um outro membro terá que surgir
alhures
tal orelha no dorso estreito
de um rato no laboratório

Mas o corpo, o anticorpo,
poderá por bem o rejeitar,
como é justo que ocorra a qualquer
estranho corpo;

e ainda que ele cante algures,
nenhures da pele o ouvirá,
pois amigo é terra de se regar
na rima leve e simples do AR...

Há de se cuidar: qualquer dia, amigo,
a gente
vai se entravar.

(Imagem - Stelios Arcadious)

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Dentes Podres

Meus dias são putas que amo
de relance
à beira do asfalto.

Arranco ali um dente
de leite
e me deito,
sentindo que me sorri
afogado num copo d´água -
ao lado da cama, ao lado do berço.

Ponteiros derretidos se agitam,
nada mais é a vida.

Desesperados,
correm os homens atrás do que fogem,

relembrando tempos
em que havia o Tempo,
a morte era um brinquedo

e não apodreciam dentes no telhado.



(Imagem - Salvador Dali)

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

MANO XEROX E O TESOURO DA POMBA RAJADA

                                                                                     “Miserável país aquele que não tem heróis.
                                                                                       Miserável país aquele que precisa de heróis”
                                                                                                                                          (Bertolt Brecht)

              

Conta-se que por volta do ano X deste século - num país muito distante e encantador, tido pelos mais românticos como “A Doce Princesinha do Mundo”, tal era a emergente protuberância de recursos materiais, naturais e humanos que dispunha -, uma família típica de uma santa terra, cujo santo que lhe doou o nome, não por acaso, dizem, foi perseguidor-mor de toda cristandade, se viu abalada em seu leito familiar por uma paixão juvenil e avassaladora. Dizem também que esta família pertencia a uma casta mui nobre que habitava o centro dessa província, ao lado da saudosa e saudosista Praça da República. Sabe-se, ainda, que viviam ali outras famílias desta mesma casta que, pelo profissional ofício de ostentarem placas em frente ao peito, na importante prática de anunciar comércios e ilustres serviços de empresas e profissionais liberais, passaram a ser conhecidas como “Placas Humanas”, o que enchia de orgulho e importância cada homo sapien membro destes grupos altamente preparados para os desafios de seu trabalho.

Como a história se espalhou, ninguém sabe muito bem, certo é que, ao menos, uma imagem se coincidiu ao correr o mundo por uma rede invisível e virtual de comunicação, sempre com pequenos textos anexos em enredos de inúmeras versões  desencontradas: uma foto, extraída por um imigrante, na verdade um estudante intercambista (o que é mais recorrente nas versões), na qual se vê um homem negro e grisalho, muito magro, sentado numa placa e segurando um pombo deitado, de costas, na palma de sua mão; ao lado, uma velha senhora, serena e corada, sentada noutra placa, aproximando-se do rechonchudo pássaro num gesto de difícil interpretação.

Recebi certa vez a famosa foto com pedaços soltos desta história. Fascinei-me. Percorri a rede de ponta a ponta, tentando restituir os retalhos dos fantásticos acontecidos dessa  terra enigmática. Adiante, então, a maior reconstituição que, claro, devolvo à rede.

Era uma família de três. Suas casas sempre foram randômicas e itinerantes, mas nas últimas noites gostaram de se alojar num quadrado de dois metros de calçada em frente a uma conhecida rede de comida rápida. Rapidamente, ao amanhecer, recolhiam do chão as mantas e os papelões de dormir, agrupavam-nos em becos e pontos estratégicos, e se encaminhavam, pai, mãe e filho, ao escritório de suas respectivas empresas para recolher o anúncio do dia e o merecido trocado do almoço.

- Não quero saber de esmolas!, enfatizava o pai do jovem Mano Xerox.

Nos costumeiros sermões, não se furtava de exaltar a importância do trabalho e do justo dinheiro alcançado. Como ilustração, recorria sempre ao início de sua carreira, quando no peito discretamente carregava apenas o vocábulo “atestado”.  Com o negócio de atestados médicos em alta, outros nomes foram surgindo na placa, e hoje não há quem, já de longe, não reconheça as fontes vivas e coloridas de outros anúncios. Conhecido como Seu Exame Currículo-e-atestado, ele é o ser vivo mais antigo e respeitado de sua casta.

A mãe, Dona Telessena-antiga, outra ponta da base moral do garoto - cuja recente maioridade civil deixou os pais mais que orgulhosos, maravilhados (tristes boatos que eu li afirmam que, no parto, a mãe pressentira que o bebê não chegaria a soprar sua primeira velinha – uns, mais sensibilizados, dizem que pela falta de comida, outros, mais socializados, que por alguma doença endêmica de seu povo); ela, a doce e preocupada senhora, como é pertinente a todas as mães, advertia-o contra os perigos das drogas e das mulheres, estas últimas, segundo ela, as mais danosas.

Talvez Dona Telessena-antiga tenha tido algumas dessas visões que fazem com que as mães antevejam a tudo, do coração que partirá à chuva que vai cair. Seus pensamentos (o que é desculpável) não estão muito claros nos relatos, mas o importante é que naquele dia Mano Xerox, há tempos enamorado em segredo pela encantadora Mina Há-vagas, havia bolado um plano que, conforme o consenso, foi uma maliciosa sugestão do amigo.

O cupido, aquele ser com a placa amorosa estufado na barriga, acertara em cheio o peito do rapaz. Aparte do romanceamento gratuito que minha tecla coage-me a cravar na história, o fato é que as pernas de Mano Xerox cambalearam ao ver aquela garota de placa incandescente e gestos que jamais reparara numa mulher. Como era a mais requisitada – ao seu redor sempre um enxame de gente querendo ler os anúncios de emprego –, o rapaz sentira uma dupla fisgada na placa do peito, uma da paixão, outra do ciúme ardente.

- O que faço para ela me notar?, perguntou ao amigo  enquanto engoliam a janta de cachorro-quente muito frio, garoado pelo dia.

Nêgo Dólar riu debochado e disse (há quem afirme que foi um grito ofensivo e de largos gestos) que mulher só enxerga uma coisa nesta vida: ouro, bufunfa, pataco, dinheiro - money, Mano, money!

Entristecido pela verdade dessa afirmação, Mano Xerox colocou a cabeça entre os joelhos e abraçou as pernas num gesto de profunda desolação, deixando escorrer pelas pernas o vermelho e azedo molho do lanche e da paixão (essa melancólica passagem, certamente floreada pela rima, é uma cópia exata de uma versão que traduzi duma língua oriental que, por questão cultural, creio, vinha seguida de incríveis desenhos de bichinhos multicores e que, segundo minha pesquisa, não pertencem a nossa fauna ordinária); mas eis que, no momento em que moscas gigantes disputavam o molho insolente, a grande e sugestiva idéia brotou dos lábios de Dólar:

- Já reparou no Vô Prata Platina-e-brilhante, aquele que jamais ri e nunca se levanta do banquinho?

- Claro, e daí? respondeu ao chão.

- Já reparou nos dentes?

- Se não ri...

- Pense bem, induziu o amigo.

- Espere... Claro, um dente de ouro!

- Já reparou quem sempre está ao seu lado?

O trágico ninho estava tecido... Há-vagas, Há-vagas!, sonhava o garoto aos céus, imaginando o sorriso e a gratidão nos lábios da amada. A idéia era bem simples: extrair o dente do Vô Prata Platina-e-brilhante e entregá-lo rapidamente ao Seu Compro-ouro; depois, com a grana levantada por este, comprar o presente mais belo e caro. Os fios se juntavam paulatinamente, martelando sua cabecinha sonhadoramente oca (confesso que o termo “oca” foi propositadamente inventado por mim para dar a dimensão, se já não pressentida pelo leitor, da tamanha encrenca que Mano Xerox estava prestes a se meter).

- Cuidado, Mano, advertiu Tio Causa-trabalhista, que escutava tudo, esticado na calçada. Se o velho der com a língua nos dentes, pode dizer adeus ao teu emprego, e sabes que não há direito algum para quem nem Carteira de Trabalho tem!

O rapaz ficou pensativo. Vô Prata Platina-e-brilhante, embora idoso e indefeso, era bastante respeitado por sua longeva carreira. Não falava muito, mal respirava direito, mas a ausência de sua cadeira no centro da praça certamente iria chamar a atenção. Tudo teria que ser rápido, não deixar vestígios, e Vô Prata deveria ficar bem para trabalhar no outro dia (tudo maquinado, tudo bem pensado, mas o que vem a seguir é um tanto ambíguo nas histórias. A coragem do rapaz é questionada quando muitas passagens batem na tecla de que precisou de estimulantes para por seu plano à risca. Acabei optando por essas, pois, mesmo que difamatórias, são por demais verossímeis).

Nas horas altas da madrugada teria ido até o abrigo da ponte do amigo Dólar - numa terra bem próxima, cujo simpático nome Cracolândia revelava, na verdade, o ritual de libertação a que seus moradores eram adeptos – e o acordado bruscamente, implorando uma pedrinha do paraíso. O amigo haveria dito que não tinha mais, o que o fez revirar seus pertences, arrombar uma caixinha e um cadeado nos dentes. Roubou o estimulante com a violência de uma paulada na nuca, a primeira da noite.

A segunda aconteceu próximo do seu quarto - nesta noite à esquerda na Rua da Direita - e dos olhos protetores dos pais. Vô Prata Platiha-e-brilhante estava lá, na ponta da encruzilhada desta com outras ruas, dormindo sentado em sua cadeira eterna, encostado na parede de um banco bonito e vermelho dessa terra (há quem diga que era amarelo, o que descaracterizaria o caráter privado deste e preencheria de significados patrióticos essa narrativa, mas ficarei com o vermelho apenas pelo contraste, ou melhor, pela confluência deste com o sangue do Vô Prata que, já na primeira paulada, pincelou de vermelho o vermelho da parede).

Duas pauladas na nuca para desacordá-lo seria providencial, já que a terceira deveria ser no lugar áureo e preciso da boca. Entretanto, o estimulante que deveria preenchê-lo de ânimo e coragem, reverteu-se em paranóica agonia (segundo aquilo que a maioria enfatiza, fora a primeira vez que Xerox copiava seus amigos na queima desta cósmica pedrinha, mas não há como ter disso qualquer comprovação). Eis que, então, pressentindo a chegada súbita da polícia, com gestos convulsos e desesperados, Mano Xerox pôs-se a bater seguidamente na enrugada face preta de Platina-e-brilhante, até que três fatos ocorreram e que, por obra da graça e sensibilidade humanas, receberam a delicadeza de incríveis detalhes, encontrados até nos relatos mais curtos.

Primeiro: os pais, não se sabe se movidos por pressentimentos ou pelo barulho da primeira lambada (alguns afirmam que o próprio Causa-trabalhista havia acompanhado toda a trajetória de Xerox e os advertido nesta hora), despontaram na rua e, bloqueados por alguns carros que vinham em direções opostas, puseram-se a gritar no eixo da encruzilhada, implorando para que o filho parasse com tamanha e absurda agressão.

Segundo: os gritos trouxeram também a polícia que, cortando com a sirene a fila da encruzilhada, derrapando os pneus, prontamente chegou às costas de Xerox que, alucinado, mal percebeu que um cassetete violentava sua nuca na mesma proporção que descarregava em Prata Platina-e-brilhante.

Terceiro: antes que o policial o acertasse, o dente de ouro de Prata finalmente se desprendeu, voando plástica e lentamente até a guia da calçada, quase jazendo para sempre num bueiro. Neste exato instante, uma pomba que acordara com o barulho, a mais faminta da praça (segundo aqueles que têm o hábito de a elas lançar milhos diários e que também contribuíram para a costura dessa história), ela, branca carcomida, rajada de preto e marrom, bicou o dente arisca e rapidamente, engolindo por inteiro o tesouro de Xerox.

Temos aqui um abismo na trama. Como os pais teriam visto – se é que viram – a pomba comer o dourado milho do Prata e, mais, teriam a reconhecido mais tarde, no clarão do dia e, ainda, ter conseguido prendê-la, ninguém sabe como seria possível, as variantes são muitas, e ainda prefiro ficar com o olhar onipresente e o auxílio fraterno do Tio Causa-trabalhista (como alguns relatos confirmam essa minha intuição, registro definitivamente essa versão, na falta, talvez, de outras melhores).

É possível que o próprio Causa-trabalhista, conhecedor de todos os meandros da lei, tenha direcionado os pais à delegacia para a incrível negociação que pretendiam propor. O fato é que adentraram o recinto - sem qualquer cuidado ou elegância de retirarem do pescoço a pele de suas placas - e imediatamente lançaram à mesa a rajada e grávida pomba (como ninguém chegou ao consenso de se era o pai ou a mãe quem carregava o pássaro, manterei a ação no plural, o que, no bem da verdade, não mudará muita coisa no desfecho desta apaixonante história que, aliás, aproxima-se).

É de se imaginar que o delegado não aceitaria aquele animal como fiança. Para que, ao menos, a negociação se iniciasse, era preciso a pomba parir o tesouro, e é justamente aqui onde começa a nossa história: desolados, sentados sobre as placas no banquinho de uma praça em frente à delegacia, Seu Exame Currículo-e-atestado segurava cuidadosamente à palma da mão a pomba rajada, de papo pro ar, ao passo que Dona Telessena-antiga massageava seu intestino no intuito de estimular o parto redentor. Foi então que um flash surgiu em suas direções – imperceptível no sorriso gigante do Sol - e registrou a imagem que correu o globo e fomentou tanto os afetos e a criatividade dos leitores que, tornando-se escritores, trataram de divulgar e pintar o mágico quadro dessa terra que, embora distante, muito distante, hoje vive, revive, latejando em nossos corações.