Conta-se que por volta do
ano X deste século - num país muito distante e encantador, tido pelos mais
românticos como “A Doce Princesinha do Mundo”, tal era a emergente
protuberância de recursos materiais, naturais e humanos que dispunha -, uma
família típica de uma santa terra, cujo santo que lhe doou o nome, não por
acaso, dizem, foi perseguidor-mor de toda cristandade, se viu abalada em seu
leito familiar por uma paixão juvenil e avassaladora. Dizem também que esta
família pertencia a uma casta mui nobre que habitava o centro dessa província,
ao lado da saudosa e saudosista Praça da República. Sabe-se, ainda, que viviam
ali outras famílias desta mesma casta que, pelo profissional ofício de
ostentarem placas em frente ao peito, na importante prática de anunciar
comércios e ilustres serviços de empresas e profissionais liberais, passaram a
ser conhecidas como “Placas Humanas”, o que enchia de orgulho e importância
cada homo sapien membro destes grupos altamente preparados para os desafios de
seu trabalho.
Como a história se
espalhou, ninguém sabe muito bem, certo é que, ao menos, uma imagem se
coincidiu ao correr o mundo por uma rede invisível e virtual de comunicação,
sempre com pequenos textos anexos em enredos de inúmeras versões desencontradas: uma foto, extraída por um
imigrante, na verdade um estudante intercambista (o que é mais recorrente nas
versões), na qual se vê um homem negro e grisalho, muito magro, sentado numa
placa e segurando um pombo deitado, de costas, na palma de sua mão; ao lado,
uma velha senhora, serena e corada, sentada noutra placa, aproximando-se do
rechonchudo pássaro num gesto de difícil interpretação.
Recebi certa vez a famosa
foto com pedaços soltos desta história. Fascinei-me. Percorri a rede de ponta a
ponta, tentando restituir os retalhos dos fantásticos acontecidos dessa terra enigmática. Adiante, então, a maior reconstituição
que, claro, devolvo à rede.
Era uma família de três.
Suas casas sempre foram randômicas e itinerantes, mas nas últimas noites
gostaram de se alojar num quadrado de dois metros de calçada em frente a uma
conhecida rede de comida rápida. Rapidamente, ao amanhecer, recolhiam do chão
as mantas e os papelões de dormir, agrupavam-nos em becos e pontos
estratégicos, e se encaminhavam, pai, mãe e filho, ao escritório de suas
respectivas empresas para recolher o anúncio do dia e o merecido trocado do almoço.
- Não quero saber de
esmolas!, enfatizava o pai do jovem Mano Xerox.
Nos costumeiros sermões,
não se furtava de exaltar a importância do trabalho e do justo dinheiro
alcançado. Como ilustração, recorria sempre ao início de sua carreira, quando
no peito discretamente carregava apenas o vocábulo “atestado”. Com o negócio de atestados médicos em alta,
outros nomes foram surgindo na placa, e hoje não há quem, já de longe, não
reconheça as fontes vivas e coloridas de outros anúncios. Conhecido como Seu Exame
Currículo-e-atestado, ele é o ser vivo mais antigo e respeitado de sua casta.
A mãe, Dona
Telessena-antiga, outra ponta da base moral do garoto - cuja recente maioridade
civil deixou os pais mais que orgulhosos, maravilhados (tristes boatos que eu li
afirmam que, no parto, a mãe pressentira que o bebê não chegaria a soprar sua
primeira velinha – uns, mais sensibilizados, dizem que pela falta de comida,
outros, mais socializados, que por alguma doença endêmica de seu povo); ela, a
doce e preocupada senhora, como é pertinente a todas as mães, advertia-o contra
os perigos das drogas e das mulheres, estas últimas, segundo ela, as mais
danosas.
Talvez Dona
Telessena-antiga tenha tido algumas dessas visões que fazem com que as mães
antevejam a tudo, do coração que partirá à chuva que vai cair. Seus pensamentos
(o que é desculpável) não estão muito claros nos relatos, mas o importante é
que naquele dia Mano Xerox, há tempos enamorado em segredo pela encantadora
Mina Há-vagas, havia bolado um plano que, conforme o consenso, foi uma
maliciosa sugestão do amigo.
O cupido, aquele ser com
a placa amorosa estufado na barriga, acertara em cheio o peito do rapaz. Aparte
do romanceamento gratuito que minha tecla coage-me a cravar na história, o fato
é que as pernas de Mano Xerox cambalearam ao ver aquela garota de placa
incandescente e gestos que jamais reparara numa mulher. Como era a mais
requisitada – ao seu redor sempre um enxame de gente querendo ler os anúncios
de emprego –, o rapaz sentira uma dupla fisgada na placa do peito, uma da
paixão, outra do ciúme ardente.
- O que faço para ela me
notar?, perguntou ao amigo enquanto
engoliam a janta de cachorro-quente muito frio, garoado pelo dia.
Nêgo Dólar riu debochado
e disse (há quem afirme que foi um grito ofensivo e de largos gestos) que
mulher só enxerga uma coisa nesta vida: ouro, bufunfa, pataco, dinheiro -
money, Mano, money!
Entristecido pela verdade
dessa afirmação, Mano Xerox colocou a cabeça entre os joelhos e abraçou as
pernas num gesto de profunda desolação, deixando escorrer pelas pernas o
vermelho e azedo molho do lanche e da paixão (essa melancólica passagem,
certamente floreada pela rima, é uma cópia exata de uma versão que traduzi duma
língua oriental que, por questão cultural, creio, vinha seguida de incríveis
desenhos de bichinhos multicores e que, segundo minha pesquisa, não pertencem a
nossa fauna ordinária); mas eis que, no momento em que moscas gigantes
disputavam o molho insolente, a grande e sugestiva idéia brotou dos lábios de
Dólar:
- Já reparou no Vô Prata
Platina-e-brilhante, aquele que jamais ri e nunca se levanta do banquinho?
- Claro, e daí? respondeu
ao chão.
- Já reparou nos dentes?
- Se não ri...
- Pense bem, induziu o
amigo.
- Espere... Claro, um
dente de ouro!
- Já reparou quem sempre
está ao seu lado?
O trágico ninho estava
tecido... Há-vagas, Há-vagas!, sonhava o garoto aos céus, imaginando o sorriso
e a gratidão nos lábios da amada. A idéia era bem simples: extrair o dente do
Vô Prata Platina-e-brilhante e entregá-lo rapidamente ao Seu Compro-ouro;
depois, com a grana levantada por este, comprar o presente mais belo e caro. Os
fios se juntavam paulatinamente, martelando sua cabecinha sonhadoramente oca (confesso
que o termo “oca” foi propositadamente inventado por mim para dar a dimensão,
se já não pressentida pelo leitor, da tamanha encrenca que Mano Xerox estava
prestes a se meter).
- Cuidado, Mano, advertiu
Tio Causa-trabalhista, que escutava tudo, esticado na calçada. Se o velho der
com a língua nos dentes, pode dizer adeus ao teu emprego, e sabes que não há
direito algum para quem nem Carteira de Trabalho tem!
O rapaz ficou pensativo.
Vô Prata Platina-e-brilhante, embora idoso e indefeso, era bastante respeitado
por sua longeva carreira. Não falava muito, mal respirava direito, mas a
ausência de sua cadeira no centro da praça certamente iria chamar a atenção.
Tudo teria que ser rápido, não deixar vestígios, e Vô Prata deveria ficar bem
para trabalhar no outro dia (tudo maquinado, tudo bem pensado, mas o que vem a
seguir é um tanto ambíguo nas histórias. A coragem do rapaz é questionada
quando muitas passagens batem na tecla de que precisou de estimulantes para por
seu plano à risca. Acabei optando por essas, pois, mesmo que difamatórias, são
por demais verossímeis).
Nas horas altas da
madrugada teria ido até o abrigo da ponte do amigo Dólar - numa terra bem
próxima, cujo simpático nome Cracolândia revelava, na verdade, o ritual de
libertação a que seus moradores eram adeptos – e o acordado bruscamente,
implorando uma pedrinha do paraíso. O amigo haveria dito que não tinha mais, o
que o fez revirar seus pertences, arrombar uma caixinha e um cadeado nos
dentes. Roubou o estimulante com a violência de uma paulada na nuca, a primeira
da noite.
A segunda aconteceu
próximo do seu quarto - nesta noite à esquerda na Rua da Direita - e dos olhos
protetores dos pais. Vô Prata Platiha-e-brilhante estava lá, na ponta da
encruzilhada desta com outras ruas, dormindo sentado em sua cadeira eterna,
encostado na parede de um banco bonito e vermelho dessa terra (há quem diga que
era amarelo, o que descaracterizaria o caráter privado deste e preencheria de
significados patrióticos essa narrativa, mas ficarei com o vermelho apenas pelo
contraste, ou melhor, pela confluência deste com o sangue do Vô Prata que, já
na primeira paulada, pincelou de vermelho o vermelho da parede).
Duas pauladas na nuca
para desacordá-lo seria providencial, já que a terceira deveria ser no lugar
áureo e preciso da boca. Entretanto, o estimulante que deveria preenchê-lo de
ânimo e coragem, reverteu-se em paranóica agonia (segundo aquilo que a maioria
enfatiza, fora a primeira vez que Xerox copiava seus amigos na queima desta
cósmica pedrinha, mas não há como ter disso qualquer comprovação). Eis que,
então, pressentindo a chegada súbita da polícia, com gestos convulsos e
desesperados, Mano Xerox pôs-se a bater seguidamente na enrugada face preta de
Platina-e-brilhante, até que três fatos ocorreram e que, por obra da graça e
sensibilidade humanas, receberam a delicadeza de incríveis detalhes,
encontrados até nos relatos mais curtos.
Primeiro: os pais, não se
sabe se movidos por pressentimentos ou pelo barulho da primeira lambada (alguns
afirmam que o próprio Causa-trabalhista havia acompanhado toda a trajetória de
Xerox e os advertido nesta hora), despontaram na rua e, bloqueados por alguns
carros que vinham em direções opostas, puseram-se a gritar no eixo da
encruzilhada, implorando para que o filho parasse com tamanha e absurda
agressão.
Segundo: os gritos
trouxeram também a polícia que, cortando com a sirene a fila da encruzilhada,
derrapando os pneus, prontamente chegou às costas de Xerox que, alucinado, mal
percebeu que um cassetete violentava sua nuca na mesma proporção que descarregava
em Prata Platina-e-brilhante.
Terceiro: antes que o
policial o acertasse, o dente de ouro de Prata finalmente se desprendeu, voando
plástica e lentamente até a guia da calçada, quase jazendo para sempre num
bueiro. Neste exato instante, uma pomba que acordara com o barulho, a mais
faminta da praça (segundo aqueles que têm o hábito de a elas lançar milhos
diários e que também contribuíram para a costura dessa história), ela, branca
carcomida, rajada de preto e marrom, bicou o dente arisca e rapidamente, engolindo
por inteiro o tesouro de Xerox.
Temos aqui um abismo na
trama. Como os pais teriam visto – se é que viram – a pomba comer o dourado
milho do Prata e, mais, teriam a reconhecido mais tarde, no clarão do dia e,
ainda, ter conseguido prendê-la, ninguém sabe como seria possível, as variantes
são muitas, e ainda prefiro ficar com o olhar onipresente e o auxílio fraterno
do Tio Causa-trabalhista (como alguns relatos confirmam essa minha intuição,
registro definitivamente essa versão, na falta, talvez, de outras melhores).
É possível que o próprio
Causa-trabalhista, conhecedor de todos os meandros da lei, tenha direcionado os
pais à delegacia para a incrível negociação que pretendiam propor. O fato é que
adentraram o recinto - sem qualquer cuidado ou elegância de retirarem do
pescoço a pele de suas placas - e imediatamente lançaram à mesa a rajada e
grávida pomba (como ninguém chegou ao consenso de se era o pai ou a mãe quem
carregava o pássaro, manterei a ação no plural, o que, no bem da verdade, não
mudará muita coisa no desfecho desta apaixonante história que, aliás,
aproxima-se).
É de se imaginar que o
delegado não aceitaria aquele animal como fiança. Para que, ao menos, a
negociação se iniciasse, era preciso a pomba parir o tesouro, e é justamente
aqui onde começa a nossa história: desolados, sentados sobre as placas no
banquinho de uma praça em frente à delegacia, Seu Exame Currículo-e-atestado
segurava cuidadosamente à palma da mão a pomba rajada, de papo pro ar, ao passo
que Dona Telessena-antiga massageava seu intestino no intuito de estimular o
parto redentor. Foi então que um flash surgiu em suas direções – imperceptível
no sorriso gigante do Sol - e registrou a imagem que correu o globo e fomentou
tanto os afetos e a criatividade dos leitores que, tornando-se escritores,
trataram de divulgar e pintar o mágico quadro dessa terra que, embora distante,
muito distante, hoje vive, revive, latejando em nossos corações.