"Mundo, mundos, um modo de não existir"
A poesia nunca foi uma substância identificável por mais que a busca de uma justa definição tenha gerado, ao longo dos séculos, um processo ativo e intenso na vasta rede das humanidades. Também não é o caso de reconhecer que o fracasso das respostas, que ora são consideradas reducionistas, ora abrangentes demais, à insólita inquirição parecem anular a necessidade de se ir adiante, afinal, uma definição clara serviria a quem? Contribuiria para a realidade de qual mundo? Atento aos versos do "claro enigma" drummondiano, Willian Delarte, neste seu primeiro livro de poesia, carrega a urgência de potência com todo o incognoscível da linguagem ao se defrontar corajosamente com/contra a rarefação de sentido(s) da vida contemporânea.
O título, Sentimento do Fim do Mundo, evidencia, por um lado, uma linhagem poética que problematiza a escrita como investimento, já que o resultado torna-se desfocado em relação à saúde da lógica econômica, "– Que câncer , que nada!/ era poema raro,/ entalado na garganta ("Poema Entalado"), ou ainda, suspeito diante da força tecnológica — "são dias em que a tevê é uma tortura" ("Outro dia"), " => Coração Digital ....................... (please waiting)" ("Inicialização Operacional Homem Digital 1.0"). Neste último exemplo fica claro que a máquina ainda não pode determinar o destino desse ser, o homem, nem mesmo determinar o ritmo, a marcação do tempo da vida. Na poesia de Willian Delarte a vitalidade do substrato cultural ultrapassa a mecânica do mundo, vislumbrada desde antigos eurocentrismos, marcando-se pelo toque do tambor.
O poeta soma ao binômio de Drummond, "sentimento do mundo", a palavra "fim" para instalar-se no limite de vozes, aquele em que se encontram os "retalhos da linguagem", segundo suas próprias palavras, com uma "generosa e solidária" vontade de liberdade. Essa precipitação do fim, que carrega as perguntas implícitas como – quais os mundos possíveis? É possível habitar o mundo? — constitui uma fenda privilegiada na visão progressiva para que apontam as três partes do livro; "o Novo Mundo", "O Mundo Perdido", "e o Fim (ou Retalhos de Mundo)".
Talvez, no reverso daquela noção de Höelderlim, Rimbaud e Celan de que a poesia é um modo de existir, possamos admitir uma filiação hipotética de que ela seja um modo interessantemente paradoxal de "não existir", um porvir sem sentido debruçado sobre as grandes pequenas coisas da vida. Nem sempre a poesia precisa de uma construção extravagante, hiper iluminada. Será também uma rememoração simples em que "a rima fácil de amar/ com esganar/ compõe um verso maldito" ("Verso Maldito"). Nem sempre o desejo de "matar", de romper, será mais importante do que o de "morrer-se", o de deixar-se ir, exprimindo-se com o comum do já dito, no eco dos repertórios literários.
A palavra poética insurgente, deste que inicia um caminho, sobrevém do choque entre opacidade e transparência dos mundos para sobreviver à maldição (à vaidade, à preguiça, ao pensar mal). A palavra "performatiza" o rito que sacraliza dessacralizando, em três chamados populares ("Ori (ou Conselho de Vovó Maria)", "Despedida de Nêgo Véio" e "Natal de Iroko"), invocações de cada uma das partes do livro.
A sua expressão é atraída tanto por aquele evanescente fumo da "Tabacaria", da composição pessoana na voz de Álvaro de Campos, como também pela imaginação de mitologias bizarras, pelas metamorfoses de "aMOR" e "MORte" que vão compondo um "Myself" todo próprio quanto pela desordem dada que desmascara o caos dos dias. Acostumados com as construções imperativas das classificações, efeitos concretistas vão se infiltrando no anti-lirismo dos dias, nas cartas, nas invocações, estendendo os espaços reflexivos do sujeito. E se o mais sublime simbolismo pode se encontrar no intestino — "Simbolismo Concreto" — é porque os subterrâneos da linguagem são férteis a uma boa nutrição poética.
O "fim" pode ser o limiar da voz em muitos níveis, menos no da ingênua retórica dos profetas de plantão, tão repetitivos, tão óbvios, tão sem memória de outros pressupostos "fins". Ao "fim" liga-se, na nossa cultura, todo o senso comum de um momento especial que é o revelado apocalipse, mas, segundo a boa observação do poeta deste livro, o fim não é um futuro aventado. Ele diz respeito ao tempo presente de um "Mundo que se mundializa/ ferozmente" (Implosão Demográfica) e à nossa consentida indiferenciação frente à torrente de acontecimentos/notícias.
O fato é que a aparente inutilidade da escrita diante de uma realidade circunstancial e absurda, que empurra-nos à mudez, serve para evidenciar o permanente desejo de ter uma atuação diferente, de ser voz solidária mas própria. São com esses versos brutalmente belos, "Tenho todos os poetas dentro de mim/ e nenhum canta o que sou" ("Sentimento do fim do mundo") que Willian Delarte ultrapassa a reificação de todas as homenagens (im)pondo-se no aqui e agora do mundo já escrito.
Delarte inscreve-se no universo literário no fluxo do repertório de uma vastidão de poetas lidos, estudados e amados no curso de Letras e ao longo da sua vida de leitor; também oferece uma flagrante percepção subjetiva/objetiva que pode nos contagiar com outros nexos. Por isso, remeto o leitor ao início, à epígrafe que abre esta obra — "Se eu quisesse, enlouquecia", retirada do texto "Estilo", do poeta português Herberto Hélder. Enquanto nesse texto, o personagem escritor diz não enlouquecer porque tem um estilo construído com a música de Bach e a matemática, apesar de simultaneamente ouvir os gritos loucos das crianças, o "eu" que se vai escrevendo na oferta com o "sentimento do fim do mundo" nos explicita a qualidade alucinada que é tentar resistir ao reino do "terrível normal inabalável" ("Caro Carlos"), ou, de outro modo, à desproteção do hipnótico medo que alguém sente quando decide publicar a sua poesia. Nessa condição, o destino de um livro é tão enigmático quanto um dia claro; a poesia escrita atrairá seus leitores e novos interlocutores e os desafiarão a pensar sobre seus modos de inexistência.
Mônica Simas de Souza
(Professora da Área de Literatura Portuguesa da USP. Publicou o livro "Margens do Destino: Macau e a literatura em língua portuguesa", além de ser coordenadora do "Grupo Portugal e o Oriente: literaturas, línguas e culturas")
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