quinta-feira, 5 de junho de 2014

CRÔNICA ENVENENADA: "PETER PAN NA TERRA DO JÁ"


Não deveria ter seguido aquele rato até a toca, mas Peter não nasceu para seguir deveres. Lá dentro, sem perceber, entrou numa estranha tubulação e fora engolido.

Um segundo depois, quando pressionou a tampa do esgoto e, com a cabeça para fora, viu os prédios a lhe engolir, teve ânsia. As buzinas o deixavam ainda mais tonto. Vomitou. Vomitou e foi rapidamente multado por sujar a cidade. Tentou voar, mas já não sabia. Resistente, levaram-no à delegacia.
           
Sem saber explicar o que fazia nas tubulações de esgoto, e sem pai, mãe ou advogado a quem pudesse recorrer, Peter foi enjaulado com mais cem animais num quadrado que cabiam dez. Estranhou não estar, ao menos, junto com as crianças desse mundo. Desolado, passou a mão no queixo. Percebeu que ganhara barba e que as horas corriam demais por aqui.

Saiu da prisão no dia seguinte, já com sessenta e cinco anos. Sem nome, sem história, um cachorro amigo e papelões nas costas. Dois segundos depois um garotinho o estranhou pelas ruas.

- Mãe, por que o velho de verde não para de bater os braços?
- Não olhe, problema na cabeça.
- Na cabeça?
- Vamos!
- Mas mãe...
           
Em sua última olhada para trás, já distante, o menino viu o velho no tamanho de um polegar. Fechou um dos olhos e colocou o dedo rente ao olho aberto, tapando por completo a imagem de Peter. Quando retirou o dedo, o velho não estava mais lá. Poderia jurar que voou. Jurou. Ideia criou raiz. Problema na cabeça. O menino não cresceu. E viveu demais.


Cinco dias após sua morte o garoto muito velho fora encontrado sozinho. Sem parentes, sem ninguém, não houve reza nem velório, mas o manuscrito desta história desencontrada, encontrado ao lado do corpo, tornou-se um grande clássico da literatura moderna, esquecido, porém, pela geração seguinte, depois por outra, e por outra, e outra.

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