quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Entreletra: SONIA BISCHAIN


Nascida e criada na Vila Brasilândia e arredores, Sonia Bischain desde muito cedo pegou gosto pela leitura, influenciada pelo pai sindicalista que, bem informado, exibia sempre seus jornais pela casa. Viciou-se, e na adolescência era chamada pelos amigos de  “maquininha de ler livros”. Aos 15 anos, em um grupo da igreja católica, conheceu a “Teologia da Libertação”, iniciando sua atuação social que, aliás, sempre fez parte de sua história de lutas. Anistia, volta dos exilados, fim da censura, da ditadura e das torturas, “diretas já” e criação de um partido do povo trabalhador, fizeram parte da sua agenda política que, como se vê, caminha paralelamente a da redemocratização do país. Sempre atuante com entidades filantrópicas na região, ajudou também a criar o Partido dos Trabalhadores na Brasilândia e Freguesia do Ó. Mãe do Fernando, da Flavia e do Yan, pegou gosto pela escrita e  pela arte de editar, pintar e desenhar. Em 1996 se voltou à fotografia e de lá pra cá também não parou mais de registrar seu olhar atrás da lente. Sempre incentivando a leitura aos “meninos da Brasa”, como diz, foi surpreendida ao ser convidada pelos mesmos para participar do Sarau da Brasa nos idos de 2008. O sarau cresceu, fortificou-se, publicou quatro antologias próprias ao longo desses anos e a ajudou a lançar seus dois primeiros livros: poesia (em conjunto com Bárbara Lopes) e um romance. Seu terceiro livro, e segundo romance, “Vale dos Atalhos” foi lançado em 2013 pela editora Sundermann. E sobre ele, e sobre tudo, é que se deu este nosso belo bate-papo textual.


ENTRELETRA: 

Seu pai parece ser uma figura marcante em sua vida. Fale dele, dos espelhos.

R: Meu pai é uma pessoa com um forte senso ético e moral, de uma dignidade e honestidade enraizadas que florescem em sua conduta ao longo dos seus 82 anos. É alegre, encanta qualquer conversa com suas histórias e seu jeito animado de encarar a vida e reproduzir os fatos por ele vivenciados, ao mesmo tempo é paciente, calmo, observador. Gosto de salientar que ele também é um bom ouvinte. Filho de espanhóis (talvez por isso seu interesse em política), que vieram ao Brasil fugindo da 1ª guerra mundial. De família muito pobre, perdeu o pai onze dias após seu nascimento, estudou somente o antigo curso primário (ou seja, 4 anos), seu interesse pela leitura o tornou um autodidata.

Na época da ditadura você chegou a sofrer (ou presenciar) abusos de violência policial? Fale dessas lembranças.

R: Bem, acho que a primeira violência que vi, eu devia ter uns 7 anos, foi uma execução, em frente de casa. Ali tinha um descampado onde as crianças jogavam futebol entre outras brincadeiras, e depois do descampado tinha um brejo com taboas. Chegou um carro com policiais e um homem. Gritaram para o homem correr e quando ele obedeceu os policiais atiraram, o homem caiu no brejo em meio às taboas. Os policiais não me viram. Algum tempo depois presenciei mais uma cena idêntica. Você ouviu dizer que a Brasilândia foi um local de desova humana durante a ditadura? Pois foi, acontecia de corpos serem encontrados nos rios e riachos da Brasilândia, essa violência era contra presos políticos e comuns (no caso dos presos comuns era praticada pelo esquadrão da morte).

Em 1976/77, recomeçaram as manifestações de rua, organizadas primeiro por estudantes, depois por outras categorias também. Eu sempre participava das manifestações (estudantes, bancários, professores, metalúrgicos), me lembro de uma de padeiros, que achei muito original, eles saíram de avental e chapéu de mestre-cuca, pelo centro de São Paulo; as pessoas nos prédios jogavam papéis picados para saudá-los) e logo vinha a repressão, com suas bombas, cassetetes, cavalos, cães. Não muito diferente do que tem acontecido nas manifestações hoje em dia. Já fiquei "cercada" dentro da PUC e na igreja da Sé. Também já presenciei "infiltrados" provocando brigas e quebra-quebra para dar a deixa pros policiais agirem contra nós. Apareciam uns caras de barba e jeans (para se parecerem com os manifestantes, mas eram pessoas que nunca tínhamos visto antes) e tumultuavam os atos. Nos anos 80 (quando Maluf era governador) começaram a aparecer uns caras estranhos (a gente chamava de trombadões) e quebravam as vitrines das lojas no Centro Velho. Ali era complicado, pois as ruas são estreitas e não tinha muito por onde fugir. Um grande amigo meu foi preso algumas vezes por participar de greves, ele era bancário. A gente tinha um esquema: todos os dias ele me telefonava (no meu serviço, a gente não tinha telefone em casa) num determinado horário, se ele não me ligasse eu já acionava D. Paulo e seus advogados, pois certamente meu amigo estaria preso.

Teve uma época em que eu era seguida em todos os lugares aonde ia por 2 agentes do DOPS, acredito que era mais intimidação, pois muitas vezes eles faziam questão de que eu percebesse que estavam me seguindo. Eles foram algumas vezes onde eu trabalhava, em horário que eu estava almoçando, e faziam perguntas sobre mim às pessoas que trabalhavam comigo, em uma ocasião procuraram minha família, e amedrontaram minha mãe, nesse dia, quando cheguei do trabalho, minha mãe estava fazendo uma grande fogueira com todos os papéis que eu guardava: jornais tipo Pasquim e Movimento, poesias que escrevi, folhetos, panfletos, boletins que eu editava sobre o bairro, etc.
Também no evento que ficou conhecido mundialmente como "Pancadaria do Ó" (deu nos jornais internacionais também), o povo da Freguesia (a maioria eram moradores da Brasilândia: Jd. Carumbé, Vista Alegre, Damasceno, Penteado, Jd. Guarani, Terezinha) apanhou de policiais à paisana. Era o Governo Itinerante do Paulo Maluf. A população se organizou em comissões para fazer suas reivindicações, como creche, pronto-socorro, hospital, posto de saúde) e foi recebida a cassetetes, soco-inglês, pauladas. Na ocasião, fiz uma faixa onde se lia: "Olhe nossas/vossas favelas" — o evento ia acontecer no Largo do Clipper, fomos de ônibus até o local —, e ao descer do ônibus, os agentes da repressão, tomavam as nossas faixas e nos batiam com o pau de nossas próprias faixas. Exigimos uma CPI para apurar as agressões e o fato ficou mundialmente conhecido. Com nossa mobilização, conquistamos o Pronto-Socorro, na av. João Paulo I, a Creche e o Posto de Saúde na Vila Penteado. O Pronto-Socorro ganhou o nome de 21 de junho (dia da pancadaria), o fato ocorreu em 1980, hoje na placa em frente, se lê "Pronto-Socorro Freguesia do Ó", parece que censuraram o nome original.

Outra violência policial revoltante, nos anos 80, que presenciei algumas vezes, era contra os camelôs. Eu trabalhava na rua Álvares Penteado, e na São Bento tinha muitos camelôs, a maioria deficientes físicos, mesmo assim, os policiais agiam com violência contra os camelôs, vi muitos deficientes físicos caírem na rua (de suas cadeiras de roda) empurrados por policiais que vinham recolher suas mercadorias. As pessoas que trabalhavam nos prédios, vaiavam os policiais e jogavam água, cinzeiros, clips e outros objetos nos policiais.

Na periferia, em verdade, a violência policial nunca acabou, pelo contrário. Você acredita estar havendo, em plena democracia, século XXI, um “extermínio de negros e de pobres” orquestrado por grupos militares? Acha legítimo o uso deste termo?

R: Sem dúvida, não há como fechar os olhos a esta realidade, todas as pesquisas confirmam: a maioria das vítimas da violência são jovens negros, pobres e de baixa escolaridade. São vítimas da discriminação, do racismo e principalmente da violência policial (apesar de muitos policiais serem de famílias negras e pobres). Na Brasilândia a presença de grupos de extermínio, infelizmente, é ainda uma cruel realidade.


Sei que a resposta será difícil, mas em qual arte que pratica você se vê melhor expressada?

R: Realmente, difícil. Para a pintura, uso pouco do meu tempo, mas é um prazer imenso quando consigo me dedicar a essa arte. Bem, eu gosto muito de escrever, é quando eu paro pra olhar pra dentro de mim e me redescubro. Amo as palavras, elas batem dentro, profundo, me causam certa comoção e me fascinam.

Mas, como diz o dito popular, "a ocasião faz o ladrão". Vivo por aí roubando imagens. Sempre com uma máquina na mão, me encanto com formas e cores. Veja só, não consigo escolher, me identifico nas três artes, todas elas para mim são poesias.



O romance “Vale dos atalhos”, tal qual um documentário, parece pintar um quadro geo-político e cultural da nossa região (Brasilândia): criação, evolução, resistências e permanências. O que a motivou escrevê-lo e, se puder mensurar, quanto tem de ficção e quanto tem de realidade em tudo o que o cerca?

R: Você tem razão ao falar em quadro geo-político e cultural; a ideia primordial foi fazer um retrato histórico de nossa região, eu tracei uma linha imaginária que vai da minha casa, na Vila Penteado, até o Pico do Jaraguá, "caminhando" por dois rios da região. Somei lembranças que tinha de alguns acontecimentos com pesquisa, partindo dos tempos da colonização portuguesa. A gente encontra alguns dados (poucos), pesquisando a história da Freguesia do Ó, um dos bairros mais antigos de São Paulo. A Brasilândia nasceu dentro desse quintal (periferia da Freguesia) séculos depois. Pesquisei sobre as populações indígenas, africanas, sobre a procura do ouro no Pico do Jaraguá, as pedreiras, a fábrica de cimento de Perus e sua história de lutas. Quanto à transformação ambiental usei mesmo minhas lembranças para descrevê-las. Fiz também uma pesquisa sobre a imigração espanhola no Brasil (minha descendência paterna), para entender melhor as histórias que meu pai contava de sua família, e outros grupos de imigrantes são citados também. Acho que a formação da população, a geografia, a flora e a fauna originais da região, é a parte real contida no "Vale", os personagens são fictícios, criei famílias e histórias que envolvem essas famílias, e criei as lendas, embora usando elementos do nosso imaginário popular, o medo, o mágico, as crenças. As lendas são para dar um certo conforto, um alívio, às muitas dores e dificuldades desses personagens.


Qual importância você dá ao Sarau da Brasa na sua vida e para toda a comunidade? Fale dos momentos que mais te marcaram nesses 6 anos de existência.

R: Primeiro, pensar em um sarau dentro de um bar, na periferia, já é uma ideia genial. O bar é um lugar público, aberto, onde qualquer pessoa pode entrar. Quebrar a tradição de local frequentado por homens, e contar com a presença feminina e até de crianças, tempos atrás pareceria inimaginável. Ter uma biblioteca (montada pela doação e boa vontade dos frequentadores) onde quaisquer pessoas, mesmo as que frequentam o bar e não o sarau, podem emprestar livros é outra coisa fabulosa. Incentivar a leitura, a criação literária (com melhores resultados no sarau do que nas salas de aulas). Ser um espaço aberto onde os grupos culturais podem apresentar e compartilhar sua arte: música, teatro, grafite, artes plásticas, fotografia, dança, enfim, todas as artes cabem no sarau e são bem recebidas.

Então, para mim, que sempre fui tão envolvida com arte, e que por diversos motivos fiquei muitos anos produzindo muito pouco, ter esse espaço (o Sarau da Brasa) foi e é algo muito importante. Sempre digo que a arte não é algo para competir e sim para compartilhar. Com essa porta aberta, conheci e pude trocar experiências com outros grupos e saraus de São Paulo e de outros estados do Brasil, chegamos até em outros países, por exemplo, com a antologia "Saraus", onde participo com o poema "Rua de Trás, traduzido para o espanhol "Calle de atrás", publicada em maio na Argentina pela editora Tinta Limón, compilação de Lucía Tennina e, em outubro deste ano de 2014, a mesma será publicada também no México.


Para encerrar, diga profundamente o que quiser.

R: Willian, o que quero agora é agradecer o seu convite e louvar a iniciativa do seu projeto "Entreletras", que só faz crescer o movimento literário projetado, principalmente, a partir do ano 2000 e que vem invadindo os espaços marginalizados das grandes cidades, dando uma perspectiva, trazendo conhecimento e inserção social aos jovens e moradores dos nossos bairros periféricos. Grata.



ALGUNS POEMAS E FOTOS AUTORAIS:


JUVENTUDE

Assim como o fogo,
aceso
no centro da roda
de amigos,
a cachaça generosa
dividia seu calor
expulsava o frio,
o medo
e as angústias.
O futuro
parecia
próximo e belo.


SENTINELAS DA PERIFERIA

Os sentinelas deixaram seus postos
Professores e alunos foram dispensados
Apagaram-se as luzes
A população se recolheu
Os ônibus deixaram de circular

Fogo!!!
Disparos!
Medo! Violência! Mortes!

Silêncio...

Choro e velas na periferia.





















BIBLIOGRAFIA, LINKS, CONTATOS:

Rua de Trás (poemas), publicados pelo Sarau Poesia na Brasa, em 2009.
Nem Tudo é Silêncio (romance), publicado pelo Sarau Poesia na Brasa, em 2010.
Vale dos Atalhos (romance), publicado pela Editora Sundermann, em 2013.
Poemas diversos publicados nas quatro antologias do Sarau Poesia na Brasa,  Antologias do Sarau Perifatividade, Antologia Saraus - Movimento/ Literatura / Periferia / São Paulo (editora Tinta Limón)
Publicação de fotos em revistas, livros, sites e blogs diversos.

www.facebook.com/soniabischain
soniabischain@hotmail.com




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