sábado, 22 de dezembro de 2018

SÓ UM TRAGO


Foi no último dia de trampo antes do recesso, sexta-feira anterior àquele Natal.  Sem trânsito algum, cheguei mais cedo no centro. Passei por uma banquinha de jornal e vi aquele cigarro free me chamando (havia parado de fumar há uns três meses, creio) e pensei: por que não? Dia propício este para matar a saudade e exorcizar o ano.

Pedi um solto e segui meu trajeto.

Adentrei a Praça da República, pouco movimentada nesta hora, e notei que um imenso feixe de luz rasgava espaço entre as árvores e iluminava um círculo bem à minha frente. Entrei no círculo e olhei para o alto, sentindo o astro-rei vagarosamente adentrar em todos os meus poros sedentos, e cansados ...

... e pensei: obrigado, Cosmos! Este ano foi de fraturar todos os ossos, mas você, Sol, faz valer cada segundo que erro e rastejo sobre este planetinha enfadonho: obrigado, Universo!

Fiquei ali tragando meu cigarro em completa epifania, sentindo os fios da Beleza e de todo o Sentido-da-vida se juntarem e me revelarem seu rosto mais transparente, mais iluminado, mais meu.

Eis que surge um sujeito mal-encarado e me rouba de mim-mesmo:

- Ei, tem um cigarro?

Respondo:
- Tenho não, comprei-o solto.

Não satisfeito:
- Então deixa eu dar um trago neste aí.

Replico:
- Mas já está no filtro ...

O puto emenda:
- Então enfia essa porra no cu!

Claro que desci do meu cósmico salto e falei para ele vir enfiar se fosse Homem! O sujeito deu no pé e eu o chamando para a briga, xingando-o com todas as dez maldições capitais de todas as infernais escrituras! ...

... Ah, bem-feito para mim que não pude ser cristão o bastante e oferecer o último pedaço de pão - no caso, um trago - para o infeliz e desejoso filho-de-deus. Também não passei no teste quando, ao invés de dar a outra face, cerrei os punhos para o renegado filho-da-mãe. Senti-me reprovado em todos os testes divinos, ouvindo aquela sirene "peeeeeeeeeeeen" vindo do céu, a indicar que tirei zero, mais uma vez. 

Contudo, sai dali totalmente revigorado, nervos e músculos a fio, praguejando os céus, chamando Deus para a briga e agradecendo ao Sol que já começava a torrar o dia: valeu, Universo!



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