(
Como a maioria dos meus textos ficcionais é de extensão bem maior, gostaria de deixar aqui um de curto fôlego. Espero que apreciem... )
O Rei
Quando o avistou pela janela, o garotinho não teve dúvida: é ele!
Colocou em baixo do braço a velha bola que rolava nos pés e, como um foguete, correu atrás do ônibus.
- Edson!, gritou a mãe que amamentava sua irmãzinha recém nascida, encostada à calçada da avenida mais movimentada da cidade.
Deu de ouvidos. Estava cego e surdo para tudo o que o cercava. Só tinha uma imagem na cabeça, aquela onírica figura que num relance de segundos encheu seu coraçãozinho de esperança.
Corria desesperadamente, com seus grandes olhos arregalados e as incríveis canelinhas finas... Mas corria bem, sempre fora o mais rápido entre a molecada do Centro.
Por isso não desistia. Mesmo percebendo a distância aumentar; mesmo ouvindo os gritos dos que ficavam para trás: hei pretinho!, tá maluco?”, nada, absolutamente nada poderia desviá-lo.
É verdade que fraquejou por um instante e pensou em voltar à mãe que, a esta hora, já deveria estar maluca de tantos gritos... Até mesmo por perceber que não alcançaria aquele ônibus - não com um par de canelas finas, curtas, cheias desses machucados de moleque arisco... Mas era o seu dia de sorte, claro que era!, e o ônibus que parecia sumir no horizonte parou no primeiro ponto logo à frente.
O garotinho tomou um pequeno fôlego, extremamente necessário à boca seca e ao pulmãozinho ofegante, mas não parou - o ponto estava lá, só algumas passadinhas... Torcia para que aquele homem descesse, para que o Menino-deus concedesse um milagrezinho, só um.
O sapato preto e brilhante surgiu na porta traseira do ônibus e à sua frente o milagre lhe sorria como um doce no altar. Não perdeu tempo: aproximou-se com a cabeça meio baixa, a bola enganchada no sovaco e os pés se arrastando no cimento.
Reparando-o bem, de perto e corpo inteiro, embora muito elegante – maleta preta de couro pra guardar troféus, gravata e tudo! - teve a completa certeza: é o Rei! Se bem que na tevê ele parecia ainda maior, mais forte... Mas TV é assim mesmo, nunca é o que é na verdade!
Lembrou da primeira vez que o viu na lanchonete do Português, num daqueles dias em que ganhava por recompensa, ou dó mesmo, um prato cheio de comida. Lá, todos podiam ver televisão à vontade sem pagar nada a mais, e sempre passava futebol. A hora do almoço é a hora do futebol!
Nesse dia passaram muitos gols antigos, da época em que nem existiam cores – muitos gols do Rei e de outros... Mas os mais bonitos eram os do rei, que era o melhor e, por isso, claro, era o Rei!
Desde então, sempre fora o Rei nas brincadeiras de bola. Sonhava em ser um jogador como o Rei, o melhor de todos e de todo o universo! Por isso a gargantinha secava, as perninhas bambeavam, agora que se via ali, tão pertinho.
Ainda ofegava quando cutucou aquele homem apressado e de aparência séria.
- Pode me dar um autógrafo?, disse meio gaguejando, estendendo o capotão quase sem couro.
- Eu?, sorriu o homem. Quem o senhorzinho acha que sou?
- Oras, o Rei Pelé, é claro!
O homem riu outra vez. Agachando-se, esfregou a palma da mão na cabecinha careca do garoto. Reparou nos pés descalços, no shortezinho rasgado, na camisetinha suja e manchada, nos olhinhos enormes e brilhantes.
- Eu vi todos os seus gols! Aquele de cabeça, assim!, aquele de chapeuzinho, o outro de...
- Olha filho, acho que...
- Por favor!, interrompeu o garotinho com os olhos cheios d´água. Eu sou o seu maior fã do mundo inteiro!
Aqueles olhos - aqueles olhinhos esbugalhados! - desconcertou por completo a alma daquele homem. Vacilante, olhou para os lados sem saber ao certo o que dizer. Via sonhos naqueles olhos... Sentia-se responsável por todos.
- Quando eu crescer, também quero ser um jogador assim como o senhor... E todos vão me ver na TV! Só não vou ser rei, por que o senhor já é o Rei. Eu posso ser assim, menos que um rei...
- Um príncipe, disse o homem.
- É... O Príncipe do Futebol!, completou, abrindo um enorme sorriso.
O homem combinou alguns números, desfez o segredo do cadeado na maleta, retirou uma Bic e tomou a bola das mãos do garoto.
- Meu nome é Dedé!
“Para Dedé, um futuro de Pelé”, escreveu, devolvendo a bola, timidamente.
O garotinho saiu correndo saltitante, vislumbrando a assinatura do Rei!
Com sensações dúbias no peito, o segurança preto do Bank Boston corria em direção contrária, atrasado para mais um dia invisível.
Atrás de si, distanciando-se mais e mais, o garotinho chutou uma latinha de Coca-cola e gritou “goool!”. Depois, com a mão no peito, tentou assoviar o hino nacional, imaginando a enorme bandeira da pátria subindo, flamulando no céu.